quarta-feira, 4 de março de 2009

Eternamente uma tarde de sábado.

Todos os sábados as quatro sabia-se ali. Tempo e compromissos eram meras palavras sem significado relevante. Clima tampouco. Quase devotamente, nos fins de tarde de todos os finais da semana Luiza sentava-se em um banco na praia e olhava. Olhava o mar? Olhava o céu? Olhava a gente que deixava vagarosamente a areia? Podia ser. Sem critérios, Luiza olhava tudo. Não possuía preferências não por falta de propósito, mas por considerar tudo igualmente importante. Ou desimportante, dependia do estado de espírito. Assim ela prestava igual atenção no movimento ao mesmo tempo contínuo e mutante das ondas do mar; no barulho que elas faziam, que parecia continuar em seus ouvidos durante o resto do dia, acompanhando-a por qualquer canto. Atentava aos ambulantes que vendiam de tudo, de biscoito a óleos bronzeadores, de limonada a caipirinha, e também pipas, e óculos escuros, e cordões, e brinquedos. Luiza não refletia sobre a vida deles e nem dos aleatórios que iam à praia sozinhos, em pares românticos, em grupos de amigos, em família...estava somente interessada em olhar o momento presente das vidas de cada um deles. Tinha um quê culpado do deleite dos voyers. Talvez mais do que tudo, Luiza gostava era de olhar o breve, fugaz e estonteante momento em que o sol, ao se pôr, toca a tênue linha do horizonte que o mar se divide do céu, e o fim de tarde que até então tinha muitas cores dizia adeus ao carnaval do dia para se dedicar ao azul marinho que avisa que a noite chega, para em pouco tempo ceder lugar ao império do infinito negro. Cores. “Que belo pintor deve ser Deus”, ela pensava, todas as vezes que os rosas e amarelos e laranjas invadiam os vários tons de azul que se apresentam nos dias (de sorte) em que o céu está limpo de nuvens. Não que Luiza não gostasse do céu da noite quando, também em dias de sorte, ficava salpicado de pequeníssimos pontos prateados que eram, para ela, mais do que somente estrelas. Eram memórias, também. Seu avó, quando vivo, costumava niná-la a noite dizendo que, quando as pessoas morriam, viravam estrelas e iam brilhar pra sempre lá no céu, olhando para e pelos mortais aqui debaixo. Mas havia algo no céu do final da tarde que a encantava inexplicavelmente. Talvez fosse a sensação do término de mais um dia, a analogia deveras natural com a finitude da vida. Talvez, mas não certamente. Luiza se permitia deixar levar pela paixão das tardes de sábado, sem se questionar. Olhar, só.

Sim, tinha um quê culpado do deleite dos voyers, aquela Luiza. Aos dezoito, alimentava-se desse prazer desde os quatorze, quando ganhou sua primeira máquina fotográfica só dela. Não mais tinha que pedir emprestada a da mãe. Agora tinha autonomia do uso, tinha posse. Aos quatorze, era importante para a filha de pais separados, que cresceu assistindo a preferência de ambos pelo irmão, ter essa posse besta. E foi no primeiro da série de sábados sentada naquele banco que ela clicou pela primeira vez a tarde. Ainda que não estivesse registrado em imagem, ela lembraria da cena: era a foto de um vendedor de milho cozido que arrastava o seu carrinho, com o sol se pondo em segundo plano. O sol tocava, provocando cores igualmente belas, a pele do homem, a areia e o mar. Quase com a obrigação de um trabalho, mais de cento e oitenta sábados fotografados depois, continuava ela. Obviamente, despertou a curiosidade - da mãe, do irmão e do padrasto, que reparavam as constantes saídas com as quais não podiam argumentar, dos amigos, que só podiam marcar os programas para depois do pôr do sol, e dos vendedores cativos dos comércios na orla, que reparavam na menina-da-maquina que não largava dali. Quando questionada o motivo daquilo, Luiza somente dizia “- É pra evitar as saudades.”. Saudades de que? “Ué, saudades de tudo. Desse tudo que consigo captar e guardar pra sempre no espaço de um clique.”. Mas não eram somente pessoas desimportantes, indignas de seu conhecimento mais profundo? Não eram tardes e mais tardes que se repetiam? “Cada tarde é diferente. Num sábado tem sol e céu limpo, já n’outro algumas nuvens aparecem e são perfuradas pelo sol, que é mais forte, deixando escapar alguns poucos raios. Em alguns, não se vê nada do sol, e o branco nublado se impõe, pesado, soberano. Mas gosto também quando o céu está cinza e chove, e a impressão que dá é que aqueles milhões de pingos de chuva sobre o mar é que estão enchendo ele.”. Tinha lá suas teorias, a Luiza. Não fazia questão que ninguém entendesse. Eram dela, só pra ela foram criadas. Para Luíza, uma vez que estamos fadados a ver o tempo passar sem termos nenhum poder efetivo sobre ele, aceitando a condição de que os momentos passam e jamais voltam, nos são descarada e irremediavelmente furtados, estamos fadados, por conseqüência, a sentir saudade. E sentir sem ter motivo especial, sem carecer de datas importantes ou ocasiões memoráveis. Cada tarde de sábado que passa é uma tarde da vida que foi, e a saudade que a garota sentia era justamente dessa vida. Do que fez, do que poderia ter feito. Saudade do que iria fazer também, pois viveria uma vez só, do jeito que era. Talvez Luiza criasse explicações sem sentido para cessar com as perguntas. Não se discute a saudade alheia, afinal.

Naquele segundo sábado de setembro, porém, sentiria, talvez, a culpa do quê culpado do deleite dos voyers. Tinha acabado de clicar uma cena de um bebê com não mais de dois anos, dentro de uma piscininha de plástico com desenhos de peixinhos – “Original”, ela ironizou para si – que gargalhava a gargalhada gostosa dos nenéns ao espirrar a água da piscininha para todos os lados, num movimento repetido de levantar e se jogar de volta, sob o olhar orgulhoso da mãe, que como toda mãe, sorri cheia de si com qualquer bobagem da cria. Luiza colocou a tampinha na lente e guardou a maquina na bolsa. Levantou-se do banco e encaminhou-se para o sinal de trânsito, para atravessá-lo e pegar o ônibus de volta para casa na outra pista. Absorta em pensamentos egoístas, Luiza olhou rapidamente e julgou que não vinha nenhum carro. Mas aquela tarde estava fadada a não ser mais uma para a coleção. Luiza via tudo, só não viu aquela moto. Tampouco ouviu a buzina. Depois dali, Luiza não ouviu mais nada. Colada em suas pálpebras, ainda estava o sorriso do neném, e provavelmente foi essa imagem que ela quis guardar quando, sem se enganar, sabia que fechava os olhos pela ultima vez. Luiza, que via tudo, já não podia mais ver nada. Não pôde ver a multidão de transeuntes curiosos que por ali se aglomeravam, nem o motoqueiro que tentava desesperadamente explicar para os bombeiros que a menina tinha atravessado o sinal aberto, nem seus pais, depois de tantos anos lado a lado, chegando na trágica cena. Talvez, se viva, Luiza quisesse fotografar aquela cena. Mas a cota de cliques tinha cessado para ela.

Coladas nas paredes do seu quarto, as dezenas e mais dezenas de comprovações do delicioso deleite, não mais culpado, não mais nada, da voyer. Naquelas fotos, porém, não se viam mais praianos, comerciantes, mar, sol, céu. Naquelas fotos, via-se Luiza, e a saudade que ela sentiu, e deixou. Seu olhar estava em cada registro, em cada segundo que ficou. Como são tolos os que acham que podem prender um momento sem que haja conseqüências! Nesse caso, a conseqüência foi a saudade. E a causa também. Saudade era o que havia para ser captado, e foi o que ficou para ser sentido.


E como eram belas as cores da saudade.