quarta-feira, 7 de abril de 2010

Lições de Chico

Faz tempo que não passo por aqui. Eu sei, deixei na mão minha meia dúzia de leitores. Mas peço compreensão. Quando se está filmando um longa-metragem, principalmente na parte da produção, como eu estava, é quase como entrar numa bolha durante semanas e, ao sair dela, descobrir o mundo de novo. Tudo bem, passada essa experiência, cá estou novamente.

Talvez pela primeira vez usarei este espaço para o que, de fato, blogs foram criados: uma espécie de diário virtual. Nunca gostei de ficar escrevendo diretamente sobre minha vida pessoal. Sempre preferi, no entanto, criar crônicas que, de alguma forma, dialogassem com o que eu sentia no momento, sem ter que abrir demais os detalhes. O trabalho do escritor, afinal, que eu tanto valorizo e amo. Além disso, sempre escrevi minhas tão queridas críticas de cinema. Desta vez, vou tentar unir os dois, para contar sobre uma experiência única e inédita em minha vida. E, é claro, absolutamente especial.

Alan Kardek certa vez disse que "o acaso não existe". Sempre flutuei por esta citação, ora acreditando nela, ora não levando muito em consideração. Mas algumas coisas realmente "são pra ser". Maktub, estava escrito. Por isso, afirmo que hoje acredito muito mais nessa frase, pois algo me diz que era pra eu fazer o filme Chico Xavier.

O longa de Daniel Filho entrou na minha vida há um ano. Em abril do ano passado, fui chamada para fazer um teste para uma das personagens. Fiquei muito empolgada com a possibilidade iminente de trabalhar com o Daniel, até então uma figura mítica para mim, que estudei cinema na faculdade e sempre admirei esses grandes nomes. Para mim ele era isso, um grande nome. Além disso, achava bastante atraente a história sobre Chico Xavier. Embora não soubesse muita coisa sobre a doutrina espírita, conhecia por alto a história de Chico, e tinha certeza de que daria um belo roteiro. Acabei não conseguindo o papel. Ele tinha que ir para uma mulher mais velha, que pudesse "envelhecer" até os trinta e poucos anos, uma vez que há uma grande passagem de tempo no filme, e eu com essa carinha de quinze (apesar do peso dos vinte e três nas costas), não convenci. Fiquei um pouco triste, mas estou acostumada com essa vida de atriz desde os seis anos. Bola pra frente.
Fui pra São Paulo em maio, fazer um curso de preparação de atores para cinema e vídeo, durante duas semanas. Meu curso terminava numa sexta, e eu iria embora no sábado seguinte, de volta para o Rio. Na quinta feira a Letícia, uma das produtoras, me ligou. Me disse que haveria um outro teste, para uma outra personagem, e queria saber se eu estaria disponível no dia seguinte a tarde. Não era possível! Mais uma oportunidade para fazer esse filme, e eu a quilômetros de distância do lugar do teste. Expliquei que estava em São Paulo fazendo um curso, e que este terminaria ao meio dia. Eu tentaria ir direto para o aeroporto, pegar o primeiro avião para a Cidade Maravilhosa, a ponto de chegar a tempo para o teste a tarde. Foi o que tentei fazer. Porém, não havia vôos disponíveis e, os que tinham horários oportunos, eram muito caros naquele momento para as minhas condições. Frustrada e com o coração na mão, liguei para ela e disse que não havia conseguido o avião. Perguntei, quase implorando, se não haveria um outro dia para testes, eu iria em qualquer horário! Só precisava mesmo era conseguir sair de São Paulo. Mas não era o caso, o teste seria só na sexta. Eu não conseguia acreditar! Deus colocou no meu caminho duas oportunidades para fazer um grande filme, uma estréia grandiosa como atriz em longa-metragens, e eu não consegui nenhuma delas. Bola pra frente mais uma vez, porém com um gostinho amargo.

Esqueci o filme durante algumas semanas. Logo que voltei pro Rio, fui convidada para fazer uma participação em um seriado da Record, e acabei focando nisso. Mas era pra ser, não é verdade? Coisa de três semanas depois, a Letícia me ligou novamente. Meu coração veio à boca quando ouvi a voz dela. Dessa vez, ela não queria me chamar para nenhum teste. Ela queria era me oferecer uma personagem. Isso mesmo, oferecer! Letícia, com toda sua fofura, tinha um pouco de receio na voz. Ela dizia: "-É uma participação bem pequena, são duas cenas só, não tem nem fala... seria uma das Irmãs Ensandecidas, e nós precisamos de atrizes de verdade para fazê-las. Não dá pra ser figuração, são personagens muito fortes, e que existiram de verdade.". Ela dizia como se eu fosse achar um absurdo não ter falas. Imagina! Eu aceitaria qualquer papel, qualquer personagem que fosse nesse filme. Ainda mais depois que ela me contou a história. Dizem que lá pelos idos de 1940, no interior de Minas, quatro irmãs ficaram possuídas ao mesmo tempo, e a mãe delas as levou no centro do Chico, para que este pudesse cura-las, o que acabou acontecendo. Aquele friozinho na barriga tomou conta de mim, o mesmo que sempre aparece quando vislumbro um grande desafio. Eu não tinha o que pensar. Aceitei no ato. Eu não conseguia acreditar que Deus havia me dado mais uma chance para fazer esse filme! Logo eu, que estava com a fé cambaleante neste momento da minha vida. Naquela noite, eu rezei para Chico Xavier, e agradeci.

Depois de uma semana de preparação de atores, embarquei para Tiradentes. Como se já não fosse surreal o que eu estava indo fazer, ainda tive o prazer de conhecer pessoas como Juliana Bertoni e Thamirys Spyker, duas das minhas irmãs fictícias, e a grande atriz Anja Bittencourt, nossa mãe. Foi juntar o útil ao agradavel. Durante toda viagem de ida, com Debussy, Chopin Tchaikovsky tocando no meu I-Pod e definindo uma fantástica trilha-sonora para uma fantástica experiência, eu rezava e agradecia por aquela oportunidade. Eu não tava nem aí se era uma participação pequena. Para mim era como ter acertado na Mega Sena. Mas o melhor ainda estava por vir.

Nervosa, fui para o primeiro dia de filmagem. Era um sábado, no centro de Tiradentes. Coloquei meu figurino, o maquiador cobriu minhas tatuagens e o cabeleireiro desarrumou meu cabelo, para me dar bem um toque de louca. De repente, a figurinista se aproxima com palmilhas de tênis, meias-calças côr-da-pele e fita crepe nas mãos. Não entendi, mas ela logo explicou. Dando um par para cada uma das "ensandecidas" (assim éramos conhecidas no set), teríamos que fixa-las em nossos pés, pois Daniel nos queria descalças. Depois, eles iram maquiar a fita crepe, deixar da cor da pele, e a meia-calça iria fazer com que as palmilhas ficassem seguras em nossos pés.

Feito isso, fomos para o set. Estava muito nervosa e ansiosa, um misto de emoções que eu nem conseguia explicar. A rua estava cheia, muitos figurantes caracterizados com roupas de época faziam crer que estávamos mesmo nas Gerais do meio do século passado. E no meio da multidão, lá estava ele. Com seu chapéu Panamá, Daniel Filho conversava com Nonato Estrela, o diretor de fotografia, ao lado de um aparato de câmera que eu nunca tinha visto, com meus quatro anos anteriores filmando curtas em cinema independente. Ele vem até nós, nos cumprimenta, e pede uma corda. Agora ele queria que ficássemos amarradas, as quatro irmãs, para aumentar ainda mais a dramaticidade da cena. Prontamente, a equipe de arte arrumou uma corda e nos amarrou.

Começa o ensaio. E mais um ensaio. E mais um. A cena era cheia de referências. Cassio Gabus Mendes, de padre, entoava um discurso contra o espiritismo, figurantes passavam, um carro rasgava a rua ao nosso lado, e nós nos debatíamos, encarnando as personages possuídas pelo o que quer que fosse, enquanto nossa mãe e dois homens tentavam nos arrastar para o centro espírita. Um desses homens era o Julio Uchôa, diretor executivo do filme, que fez uma participação como o "Homem da Bíblia" (devo desculpas ao Julio por alguns socos e pontapés que devo ter dado nele durante a cena). Na hora de, de fato, filmarmos, de tanto que havíamos nos debatido, a corda que roçava em minha cintura, ainda que por cima da roupa, feriu minha pele e deixou hematomas. Alguns lugares, perto das costas, estavam em carne viva. Mas durante a cena, nem mesmo senti. Só fui me dar conta dos machucados quando voltei para o hotel e fui tomar banho, depois de um longo dia. Fui dormir feliz e sem sentir dores.

Segundo dia de filmagem, domingo. A cena era interna, o centro espírita de Chico Xavier. Na noite anterior, antes de dormir, eu havia terminado de ler o livro do Marcel Souto Maior, que deu origem ao roteiro. Estava totalmente inteirada na vida do Chico e, ao chegar no set e ver Angelo Antonio caracterizado como tal, levei um susto. Era muito real, não só a maquiagem e o cabelo, mas a paz que Angelo passava. Nossa cena seria só depois do almoço, e enquanto isso eu papeava alegremente com as atrizes do lado de fora, que a esta altura já haviam se tornado minhas amigas.
Esperamos um bom tempo para gravar. Ainda estava bastante ansiosa, pois esta era a cena mais importante para mim. Enquanto estava na varandinha do lado de fora da casa que servia como cenário, saboreando um de meus Malboro Lights, uma voz surge atrás de mim. "-Eu tenho observado que a senhorita anda fumando muito...Não deveria fumar tanto.". Era o Angelo Antonio, chamando minha atenção, com uma leve preocupação na voz. Quando começamos a conversar, pensei que seria exatamente o tipo de coisa que Chico Xavier me diria, com a mesma serenidade na voz.

Minhas previsões estavam certas, e realmente foi uma cena bastante dificil. Chico (Angelo) rezava com muita força enquanto cada uma de nós, ensandecidas, o tocávamos e zombávamos dele, até que caíamos no chão, desoladas. Nisso, um Chico Xavier cansado e enfraquecido é atingido pelo "Homem da Bíblia", quando Julio Uchôa começa a bater com o Evangelho na cabeça de Angelo. Ser dirigida por Daniel me deu a sensação de estar sendo coordenada por um cara absolutamente profissional, que se sente 100% confortável naquela posição, e que sabe exatamente o que quer e e o que está fazendo. Um diretor, afinal.
A cena foi rápida. Fizemos só uns dois ensaios e filmamos umas duas vezes. E foi aí que o momento mais marcante de toda viagem aconteceu.

Eis que Daniel volta ao set. Ele se posiciona ao lado da mesa do cenário, onde minutos antes Angelo estava sentado. Na frente de todo elenco e equipe, em um set cheio, Daniel diz: "-Eu gostaria de agradecer profundamente essas meninas. Elas são atrizes e aceitaram vir até aqui para fazer essa pequena participação no nosso filme, e eu estou muito satisfeito com o resultado, e sou muito grato a elas.". Do nada, ele começa a bater palmas, e é acompanhado por todos. Em instantes, um set inteiro de elenco e equipe está batendo palmas para nós. Minha emoção foi ao auge e uma vontade profunda de chorar tomou conta do meu peito. Segurei firme, não queria desabar ali. Mas este foi um momento que eu guardei com muito carinho, e jamais esquecerei em toda a minha carreira. Um elogio do Daniel Filho vale mais que um milhão de dólares.

Voltei para o Rio no dia seguinte. Na viagem de volta, fui recordando os momentos. As conversas com a Ju, Thamirys e Anja. Nossa pizza com vinho, depois de um rápido passeio por Tiradentes no último dia. A igrejinha singela que eu achei perto da base de maquiagem, numa ruazinha estreita, e na qual eu entrei depois do último dia de filmagem para agradecer aquela oportunidade. Ela era pequena, mas tinha toda a grandeza das igrejas mineiras, cheia de ouro e valores. Exatamente como a minha participação, pelo menos para mim.
Recordei que, a todo o tempo, eu ficava estudando Daniel no set, tentando sugar o máximo de conhecimento. Para uma roteirista e atriz, que quer trabalhar com direção um dia, aquilo era melhor que qualquer curso. E aprendi que um diretor de verdade é um profissional que exige o melhor de seus atores e de sua equipe, simplesmente porque ele tambem está dando o melhor de si. Alem disso, é um cara que sabe apreciar, elogiar e valorizar cada ponto positivo que cada um proporciona ao trabalho de todos. É um profissional mesmo, na mais pura essência da palavra, que tem total controle sobre o set, sabe a função de cada peça de cada aparato de cada equipamento que está ali. Principalmente, sabe o seu conceito, sua idéia maior, é fiel a eles, e consegue passar isso para cada membro de sua equipe. Ele sabe exatamente o que ele, e todos, estão fazendo ali.
Fiquei lembrando de pequenos prazeres que tão importante foram. O cheiro do caldo-verde do hotel, o doce de leite bem mineiro que comprei na estrada. Os risos das meninas, as bobagens que falamos durante dois dias inteiros. O tanto que aprendi com Daniel, Angelo, e cada membro da equipe com o qual tive contato, mesmo em uma passagem tão rápida. O passeio por Tiradentes, o vinho que nos esquentou naquele frio de junho. E meu I-Pod tocava a mesma trilha sonora da ida.

Um ano depois, fui a pré-estreia, cheia de orgulho, por fazer parte daquela experiência grandiosa do cinema nacional. E foi fantástico ver que aquele trabalho se transformou em um filme muito bonito, que ultrapassa as fronteiras religiosas. Não é um filme espírita, tampouco um filme sobre espíritos. É simplesmente um filme sobre um homem extraordinário, um brasileiro sem igual, que tem muito a nos ensinar, durante anos e anos vindouros.
Lá pelas tantas no filme, tocou Debussy. Tocou Clair de Lune. A mesma música que preencheu minha trilha sonora, a trilha sonora da minha vida, na viagem a Tiradentes. Não era coincidência. Não era o acaso.

Era, porque tinha que ser.


"Embora ninguem possa voltar atrás e fazer um novo começo, qualquer um pode começar agora e fazer um novo fim". (Chico Xavier)