domingo, 29 de novembro de 2009

Meryl com manteiga, com afeto.


"Julie & Julia" (Julie & Julia, de Nora Ephron, EUA 2009), é um filme perigoso. Daqueles em que já há uma pré-disposição a se gostar, antes mesmo de entrar no cinema. Há Meryl Streep... esplendorosa, incrivelmente versátil, enchendo a tela com um tipo raro de talento que é capaz de segurar o filme sozinho. Há uma história baseada em fatos reais, uma jornada de superação de uma mulher de classe média americana, insatisfeita com sua vida, incapaz de não deixar tarefas inacabadas, que encontra inspiração em um livro de receitas escrito por uma outra mulher anos antes, e passa a fazer daquilo um projeto de vida: 524 receitas em 365 dias, com todas as experiências devidamente registradas em um blog. Há as boas atuações de Stanley Tucci e Amy Adams. Há romance, dois casamentos praticamente perfeitos, que superam crises e esfregam na cara do mundo que este tipo de relacionamento é possível. E há, por fim, comida. Muita comida. Se você não entrar na sala de cinema de barriga cheia, certamente sairá com fome de lá.

Com tantos ingredientes cuidadosamente escolhidos para um efeito quase infalível no coração e no estômago do espectador, fica difícil entender por que Julie & Julia não é tão apaixonante assim. Nora Ephron começa bem, com uma montagem paralela que de cara nos faz entender que se trata de duas histórias distintas, que ocorreram em épocas diferentes, mas que de alguma forma se relacionam uma com a outra. Ambas começam em um processo de mudança - de bairro ou de país -, tanto Julie quanto Julia sentem-se insatisfeitas, infelizes com as vidas sem substância que vivem. Ao mesmo tempo em que, no presente, Julie encontra em Julia uma inspiração para sair da rotina de seu apartamentinho no Queens e seu trabalho insosso, Julia, em uma Paris da metade do século XX, encontra na culinária uma válvula de escape, um entusiasmo criador, uma maneira de juntar a paixão por comer com algo realmente animador e construtivo. É notável a boa construção do roteiro, ao intercalar as duas histórias. Mas parou por aí.

Interrompendo a espiral crescente de entusiasmo e graça que o filme proporcionava, ele começa a decair a partir das tentativas de Julie fazer uma lagosta. É quando, então, a película se afirma como uma cine-biografia, e os 123 minutos de duração parecem estender-se por quatro horas e meia. Talvez eu o tenha ido assistir em um horário ingrato, uma sessão de meia noite e quinze, mas continuo acreditando que um bom filme é aquele que nos deixa ligados do início ao fim, seja as três da tarde ou as três da manhã. Assim como Ephron foi feliz no início de seu roteiro, ela parece ter se perdido na metade para o final, não sabendo mais exatamente como intercalar aquelas duas histórias de forma que não se tornasse algo entediante. Cine-biografias são complicadas, isso é um fato, pois trata-se da vida de uma pessoa, que por mais incrível, inspiradora e fora dos padrões que seja, continua o dia-a-dia de alguem, e nem todos os dias, nem todos os anos, são tão interessantes assim. É o conjunto o que vale. Logo, somos arrastados mais de uma hora por todo o projeto de Julie com suas 524 receitas. E a odisséia para se desossar um pato acaba por deixar claro que isto não é, no fim das contas, tão emocionante assim.

O que fica é a boa e velha mensagem preferida de Hollywood: não desista dos seus sonhos, há sempre uma luz no fim do túnel, basta ter perseverança. É certo que a personagem de Amy tende mesmo a se deixar influenciar mais do que o normal pela personagem de Meryl, transformando-se em uma fã fanática, quase uma groupie enlouquecida. Mas é preciso dar um desconto, uma pausa na pré-implicância gratuita com produtos americanos mainstream e, por fim, nos deixar levar pela esperança, que no filme se impõe como uma certeza, de que podemos enxergar no outro uma razão e um motivo para seguirmos em frente, para darmos a cara a tapa, sem medo de errar. Pode ser um pouco exagerado dizer que o livro de Julia Child na vida real, "Mastering the Art of French Cooking", tenha realmente mudado o mundo, como o disse seu marido, Paul Child. Todavia, ele definitivamente mudou a de Julie Powell, autora do livro que deu origem ao filme, e é certo que tocou mais uma meia dúzia de almas por aí. Há pessoas que encontram a salvação na precisão e da delicadeza necessárias para o preparo de um prato mais sofisticado, o que nos faz perceber que esta salvação pode estar em qualquer lugar, escondida nos cantos mais improváveis das vidas mais monótonas. O que vale é que, de uma forma ou de outra, ela está sempre ali. E é esta a lição que deve ficar. Bon Appetit!