sexta-feira, 24 de abril de 2009

É possível ter a certeza de que o que é, afinal, é amor, quando afastado - voluntariamente - do objeto amado, ainda se ama. As vezes, apenas sabemos. Sabemos que aquela pessoa é a pessoa pra vida toda, mas não necessariamente esta vai cruzar o seu caminho no momento certo. Pra você ou para ela. Resta, então, esperar. O saber conforta.
Seria mentiroso de minha parte dizer que não dói. Dói saber que o objeto amado leva a vida na ignorância, sem saber que você está ali somente esperando por ele. Somente aguardando o momento em que talvez uma centelha divina o indique que o caminho é, por fim, você. E que os seus caminhos são os mesmos.
Sorte daqueles que têm a sabedoria e a serenidade de se saber afastar. De se saber sumir por uns tempos, andar por aí. Viver. E, se ainda assim, o sentimento persistir... Sim, é amor. E amor é ainda mais belo quando ele existe por si só, sem esperar a recompensa, a resposta. Porque assim ele é puro. Ela, a resposta, virá, mais cedo ou mais tarde. Porque no final das contas, é preciso amar. Muito e sempre. Várias pessoas ou uma só. E perder, e perder de novo, para que o sabor do "ganhar" seja ainda melhor.
A vida, simplesmente, só me faz sentido assim.

terça-feira, 7 de abril de 2009

Os longos cabelos de Teresa.

Teresa vinha postergando aquele momento por um bom tempo. Pelo menos, pelo máximo que ela era capaz de postergar. Se culpava até hoje de ter ido fazer um preventivo de rotina do seu ginecologista. As vezes, é melhor viver na ignorância. Evita-se o sofrimento. Ou posterga-se, enfim.

Ali, em frente ao espelho do banheiro, um turbilhão de memórias passavam em frente aos seus olhos. Tudo acontecera muito rápido, lhe parecia, desde que aquele papel pesara em suas mãos, como se tivessem uma tonelada, na cadeira do médico. De que maneira ele conseguia falar “câncer” de forma tão natural, ainda que tentasse um certo pesar no tom? Para não se sentir mal, talvez, ou para amenizar o possível impacto que o paciente teria, como quem diz “eu sei o que você está passando.”. – Sabe nada – pensou Teresa! É preciso ter pra saber, isso sim. Como conseguia aquele médico simplesmente encaminhá-la para um oncologista como se ela fosse uma mera candidata a estágio que passava para a próxima fase, sem nem ao menos digerir a anterior. Teresa não lembrava, porém, se havia falado alguma coisa ao médico, ou se simplesmente saíra do consultório, ainda com o papel do exame de uma tonelada nas mãos, sem rumo, sem saber para onde iria primeiro, ou a quem contar. Contou a Cristovão, evidentemente. Esperou o marido chegar em casa do trabalho e estendeu com as mãos trêmulas o fatídico papel para que ele pudesse ler. Há vinte e cinco anos de casamento, Cristovão era seu maior companheiro, sabia que ele a ajudaria a passar por essa fase, embora ela constantemente repetisse pessimistamente, para a irritação de Cristovão, que não acreditava que haveria uma próxima fase para ela. Teresa achava deveras amável as tentativas do marido para encorajá-la, repetindo os velhos argumentos de que a medicina está muito avançada hoje em dia, que os tratamentos são cada vez mais eficazes, que ela havia descoberto a doença logo no início, então tinha mais chances de cura. Amável era, mas pouco eficaz. “É preciso ter um tumor te consumindo por dentro para saber.”, ela repetia, mentalmente. Os amigos também não faltaram; “- Pelo menos é de colo do útero. – disse certa vez Pilar, sua vizinha. - A Elzinha teve de mama, teve que tirar um seio, coitada.”. Será possível que achavam que estavam animando ela assim? Classificando os tipos de câncer em uma tabela, como se fossem times para os quais torcer?

Teresa começara a ter pensamentos estranhos, ali na frente do espelho. “Quem sentirá saudades de mim primeiro? Do que sentirão mais saudades?”. Ouvira falar há muito tempo que a pessoa era acometida por um imenso sentimento de angústia por achar que seu rastro não vai fazer diferença no mundo, antes de morrer. Teresa não queria fazer diferença no mundo. Ela queria fazer diferença na vida das pessoas que amava, somente. Na verdade, não queria morrer, acima de tudo. Não tinha medo, propriamente, da morte. Só não achava que era a hora ainda. Tinha quarenta e cinco anos, se considerava uma jovem ainda. Ia uma vez por semana tomar uma cerveja com os amigos, ainda tinha os peitos empinados, aguentava duas aulas seguidas de spinning.

Não teve filhos. Nunca conseguiu. Agora se arrependia de nunca ter procurado um médico e se empenhado em tratamentos. Era bizarro pensar que um tumor, um minúsculo e corrosivo agente da morte, agora ocupava o lugar que poderia ter gerado uma vida. Porém, não havia mais tempo para arrependimentos. O próximo passo, ali em frente ao espelho do banheiro, era inevitável. Desde que começara a quimoterapia, Teresa sentia um medo sufocador de perder os cabelos. Não se importava com os enjôos e tonteiras causados pelo tratamento, conseguia lidar relativamente bem com eles, inclusive. Mas os cabelos, não. Fora famosa na juventude por eles. Eram longos, lisos, pesados. Tinham uma cor única que vacilava entre o castanho acobreado e o ruivo. E os anos que passaram não fizeram um único fio branco surgir no meio deles. Agora os usava mais em coque, presos para trás, condizendo com a idade. Mas que pena ela tinha, que medo ela tinha, de perder aqueles cabelos...

Mais do que perder os cabelos por si, ela tinha medo de perder Cristovão por perder os cabelos. Poderia parecer uma idéia idiota, mas quem iria questionar? As pessoas têm medo de brigar com doentes. Parece que estão cometendo um incrível erro. Mas a questão é que, desde que se conheceram, Cristovão constantemente falava dos cabelos dela. Elogiava um novo penteado, falava do cheiro bom que eles tinham ao sair do banho. E todas as noites que passaram juntos, durante esses vinte e cinco anos, Teresa se aninhava entre os braços do marido naqueles minutos antes de dormir e ele, delicada e devotamente, rolava seus dedos pelos fios, acarinhando a cabeça da esposa até que ela, finalmente, dormisse. Jamais dormia antes dela. Teresa tremia só de pensar o que Cristovão pensaria quando ela não mais tivesse cabelos por onde ele entrelaçar seus dedos. A deixaria por isso? Não conseguiria segurar a pressão? A abandonaria? Todas essas perguntas pioravam toda vez que seu peito era arrematado pela saudade antecipada que sentiria daquele carinho.

Percebendo que muito tempo se passara desde que começara os devaneios desta vez, Teresa deu uma ultima olhada no espelho, e mirou bem, talvez para nunca mais, o equilíbrio de seu rosto com seus cabelos. Foi a sua vez de percorrer, com seus dedos, os longos fios, do couro cabeludo até suas pontas, uma, duas, três vezes, como se quisesse guardar no tato, nas pontas das extremidades dos dedos, a sensação que aquele simples ato conferia. Secou a única lagrima que caiu do olho esquerdo. Única, não era de chorar. E então pegou a tesoura na ponta da pia. Com muita dor, como se de fato pudesse sentir as lâminas, deu o primeiro corte. O primeiro tufo, bastante volumoso, caiu sobre a pia. Teresa não teve coragem de olhar para o cabelo caído; preferia, de qualquer forma, continuar focando o espelho, que agora revelava o desequilíbrio do corte. Pegou outro grande chumaço com a mão e cortou fora. Fez isso repetidas vezes, sempre com muito pesar, até que todo seu cabelo ficasse na altura dos olhos. Se aquela imagem já era chocante para Teresa, não conseguia imaginar a que viria em seguida. Sem desgrudar os olhos do espelho, para não olhar o cabelo caído por toda a extensão da pia, localizou com as mãos a máquina. Ligou-a, e nunca pensou que aquele barulho daquela maquina que ouvia todas as manhãs quando Cristovão fazia a barba pudesse ser tão perturbador. Respirando fundo uma única vez, ela encostou a máquina na cabeça e deu um puxão para trás. Dessa vez era demais, não poderia ficar assistindo sua própria decadência, então fechou os olhos forçadamente, não só para não ver, mas também para não permitir que as lágrimas saíssem. Como se quisesse acabar logo com aquilo, fez o mais rápido que pode, nem sabe quantas vezes. Sentiu que não havia mais o que raspar, e largou a máquina. Não abriu ainda os olhos. Devagar, levantou os braços e levou as mãos a cabeça, tocando-a tão vagarosa e delicadamente como se fosse um cristal que pudesse quebrar com o toque. Não era cuidado, ela sabia, era medo da sensação. A estranheza foi diferente do que ela calculou que seria. Talvez fosse o velho ditado de que “o que os olhos não vêem o coração não sente.”. Era como se estivesse tocando outra cabeça, de outra pessoa, que não a dela. Mas sabia que não era suficiente. Por dentro sabia, era uma mulher adulta, madura. Tinha que abrir os olhos. Já estava feito, não tinha volta.

Abriu os olhos. Por alguns segundos, sua respiração parou. Por alguns segundos, o mundo inteiro parou. Não era choque, não era tristeza. Não era raiva que ela sentia. Surpreendentemente, o que Teresa sentia era saudade. E não as saudades antecipadas de antes, dos dedos carinhosos do marido nos cabelos que não tinha mais. Era mais. Era saudade de toda uma vida que ela sabia que tinha se esvaído junto com aquelas centenas de fios. Era o simples andar na rua que não mais existiria sem que as pessoas a encarassem com aquele olhar de “você está doente, coitada.”. Era o prazer de se arrumar para uma festa que não mais existiria, pois nenhum lenço tão bonito ou elegante como seus cabelos antes eram. Era a brisa de verão fresquinha que sentia balançar suas madeixas, refrescando do calor. Era a mania de toda hora ficar fazendo e desfazendo um rabo de cavalo improvisado. E como não poderia deixar de voltar, era ele. Era a saudade do carinho de Cristovão. Eram seus dedos que nunca mais iriam carinhar sua cabeça. Ele não ia querer nem mesmo tocar naquela cabeça, teria nojo, teria ojeriza. Teresa ia morrer, já sabia. Diante de tudo isso, não ia nem mesmo ter a vontade de procurar as forças para continuar vivendo.

Foi no meio desse pensamento que Cristovão abriu a porta do banheiro. Teresa não ouvira, de tão absorta que estava entre seus pensamentos, mas há alguns minutos o marido batia na porta, chamando por ela, perguntando o que estava acontecendo. Preocupado com a falta de resposta, ele finalmente conseguiu escancarar a porta, para tão somente olhar aquela cena. Pela primeira vez naquela tarde, Teresa desgrudou os olhos do espelho, e olhou para ele. Pela primeira vez na vida ela se deixou chorar. E as lágrimas caiam involuntariamente, como se ela não tivesse nenhum controle sobre aquilo. Apreensiva, Teresa não falou nada. Implorava secretamente por um sinal de apoio, mas já estava convencida a aceitar se ele a quisesse abandonar. O amava muito para forçá-lo a passar por aquilo junto com ela.

Cristovão percorreu o olhar pela pia, e viu os vários tufos de cabelo, de diferentes tamanhos, espalhados. Olhou, então, para a mulher. Nunca a vira daquele jeito, era de se admitir. Não somente careca, mas chorando compulsivamente. Mas ele a amava tanto! Sabia que a amava, mas ao vê-la assim, tomou conta de seu peito um daqueles momentos em que o ser humano tem certeza daquilo que ele já sabe, de alguma forma. Percebeu que não tinha expressado nenhuma feição em seu rosto que confortara a mulher, pois ela continuava parada, nervosa, esperando que ele desse as costas e saísse. Mas ele não virou de costas. Ao invés disso, ele caminhou até ela, passo a passo. Chegou tão perto dela a ponto de sentir o cheiro fresco da lavanda pós banho que ela usava desde que se casaram, e em cujo aroma ele era incalculavelmente viciado. Levantou os dedos e secou as lágrimas que caiam do rosto da esposa. Beijou sua testa. E sem falar nada, pegou-a no colo, como os noivos fazem. Ainda silenciosamente, levou-a até a cama e deitou-a. o choro de Teresa tinha cessado para dar lugar a uma promessa de sensação de alivio, que ainda não tinha se concretizado porque, dentro dela, sabia que ainda tinha mais por vir. E então, Cristovão deitou ao seu lado, puxou-a pelos braços com cuidado e a aninhou em seus braços. E inesperadamente, começou a fazer carinho na cabeça de Teresa. Ela olhou assustada para ele! Não sentira repugno?

E como se nada tivesse acontecido, ele continuou a deslizar seus dedos amavelmente pela cabeça dela, como se não fizesse diferença a falta de cabelos ali. Assim ficou por algum bom tempo, incansavelmente, porque naquela noite Teresa custou a dormir. A sensação de conforto que aquele simples ato de amor foi capaz de lhe proporcionar foi o suficiente para que ela percebesse que talvez a próxima fase viesse, que talvez tivesse sim vontade de procurar forças para lutar. E que talvez as saudades antecipadas que sentira daquele carinho não fizessem sentido, pois na verdade, o amor da sua vida acabara de provar que não havia nem a mais remota promessa de espaço para elas.